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O Reino de Deus e a Cristandade Neoliberal


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O Novo Testamento apresenta o Reino de Deus como realidade incompatível com a lógica política dos impérios e dos Estados. Diante de Pilatos, Jesus afirma: “O meu Reino não é deste mundo. Se o meu Reino fosse deste mundo, os meus servos lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus; mas o meu Reino não é daqui” (Jo 18,36). A recusa da violência: “Guarda a espada, pois todos os que lançam mão da espada, à espada perecerão” (Mt 26,52) e a inversão do mando: “entre vós não será assim; quem quiser ser grande seja vosso servo” (Mc 10,42-45) delineiam um Reino que se funda no serviço e na autodoação, não no domínio. A comunidade nascente vive a partilha: “um só coração e uma só alma […] tudo entre eles era comum” (At 4,32). A lealdade última do discípulo, por sua vez, pertence a Deus: “É preciso obedecer a Deus antes que aos homens” (At 5,29); “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21), lembrando que, se a moeda leva a imagem de César, o ser humano leva a imagem de Deus (Gn 1,27). Paulo resume: “Nossa cidadania está nos céus” (Fl 3,20), e “o Reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas em justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17). A crítica profética ao poder imperial culmina na denúncia apocalíptica da “Babilônia” a cidade que reina sobre os reis da terra, embriagada do sangue dos santos (Ap 17–18) e na tentação em que “todos os reinos do mundo e sua glória” são oferecidos a Jesus ao preço da idolatria (Lc 4,5-8). O Sermão da Montanha explicita o destinatário do Reino: “bem-aventurados os pobres…” (Mt 5,3.6.10) e o horizonte ético que desmonta a absolutização do Estado e do Mercado: “Ninguém pode servir a dois senhores […] não podeis servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24).

É assim que podemos entender a distinção entre cristianismo e cristandade. Escrevi um texto sobre isso aqui. Chamo de cristandade toda aliança entre religião e Estado que instrumentaliza a fé para legitimar poder, domesticar consciências e produzir pessoas submissas à ideologia hegemônica aliada aos interesses que se defende. O precedente clássico é Constantino: a conversão imperial transforma a fé dos perseguidos em religião de Estado; desde então, comunidades inteiras insistiram em permanecer fiéis ao evangelho, tensionando por dentro e por fora a máquina eclesiástico-imperial. O critério é simples e exigente: a Igreja de Jesus é comunidade dos pobres em fraternidade e serviço; a cristandade é religião de Estado, administração do sagrado a serviço da ordem.


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No presente brasileiro, emerge uma cristandade neoliberal cujo imaginário religioso casa com o ethos da prosperidade, do empreendedor de si e da moralização da pobreza. Multiplicam-se templos que se assemelham a shopping centers: “paredes pretas”, luzes de show, linguagem jovem, culto-experiência centrado em emoção e performance — uma estética que não é mero detalhe, mas pedagogia visual do consumo e do espetáculo. Matérias e pesquisadores vêm registrando o “boom” dessa estética de “paredes pretas”, que mira deliberadamente a juventude, desloca a liturgia para o palco e organiza o culto como produto de experiência sensorial. Correio 24 HorasComunhão Essa ambiência teatral favorece uma seleção utilitarista de textos bíblicos — promessas de vitória, cura e bênção — para sustentar um evangelho de resultados imediatos, alinhado à meritocracia neoliberal. A literatura acadêmica descreve essa convergência entre neopentecostalismo e teologia da prosperidade como vocalização de um ethos privatista e afinado ao neoliberalismo, no qual o fiel é “sócio de Deus” destinado à prosperidade e onde desigualdades tendem a ser sacralizadas como sinal de graça individual. UrbanData BrasilSciELOHistória da Arte GuarulhosRepositorio PUCSPBDTDAcademia

Nada disso invalida o fato — que precisa ser reconhecido com honestidade — de que muitas dessas igrejas ocupam vazios deixados pelo Estado e por instituições tradicionais, prestando auxílios reais: acolhem gente ferida, oferecem redes de apoio, criam pertencimento e, não raro, fazem assistência concreta. Inclusive o próprio poder público tem buscado a capilaridade das igrejas para encaminhar pessoas vulneráveis a políticas sociais, o que evidencia tanto sua presença territorial quanto a insuficiência estatal. Agência Brasil Há lideranças e comunidades que agem com genuína compaixão. A crítica, aqui, não mira o padecente que busca socorro, mas as estruturas e dirigentes que transformam a dor em capital político e econômico, revestindo de piedade uma engenharia de poder e dinheiro.

Quando passamos do plano do discurso ao das práticas, aparecem casos que ilustram como religiões podem ser cooptadas em esquemas ilícitos, o que reforça a necessidade de distinguir

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fé vivida de aparato institucional. Reportagens e investigações recentes apontam o uso de igrejas por facções criminosas para lavar dinheiro, aproveitando-se da opacidade de doações religiosas e da falta de rastreabilidade legal: no caso do PCC, a compra e a abertura de templos teriam servido para mesclar dízimos com recursos do tráfico, com movimentações estimadas em dezenas de milhões de reais, segundo UOL e Terra. UOL NotíciasTerra Em outro front, o pastor Davi Nicoletti, da Igreja Recomeçar, também conhecido por “milagres financeiros” nas redes, é investigado pela Polícia Civil de São Paulo por uso da igreja para lavar dinheiro ligado a pirâmide de criptomoedas; a imprensa registra movimentações de milhões de reais associadas ao caso. MetrópolesCNN Brasil No plano nacional, é público e notório o indiciamento do pastor Silas Malafaia na Operação Timóteo (2017), por lavagem de dinheiro em esquema ligado a royalties de mineração, fato confirmado por veículos como UOL e outros, além de operações da PF que o alcançaram novamente em agosto de 2025. UOL Notícias+2UOL Notícias+2Midiamax Esses exemplos não pretendem generalizar culpas, mas ilustrar mecanismos pelos quais a cristandade neoliberal, travestida de assistência e espetáculo, pode se articular com corrupção, lavagem e poder local, inclusive por meio de parcerias com entidades “do terceiro setor” que funcionam como fachadas.

Teologicamente, o ponto decisivo não é negar milagres, emoção ou estética contemporânea, mas perguntar qual “deus” se adora quando o culto converte a vida em vitrine de performance e prosperidade. O evangelho, que nasceu como boa notícia aos pobres e perseguidos (Mt 5,3.10), não autoriza sacrificar o outro no altar do sucesso. Quando a mensagem se torna algoritmo de vitória individual, quando a bênção se mede em consumo, e quando a “guerra espiritual” justifica cruzadas morais contra corpos e dissidências, aquilo que se ergue não é o Reino de Deus, mas a idolatria: “todos os reinos do mundo e sua glória” (Lc 4,5-8) exigindo adoração. O cristianismo bíblico, ao contrário, relativiza César (Mt 22,21), denuncia a Besta que quer culto político (Ap 13) e constitui comunidades de partilha (At 4,32), lembrando que servir é a medida do poder (Mc 10,42-45) e que não se pode servir a Deus e ao Dinheiro (Mt 6,24). Por isso, nomear o presente como cristandade neoliberal não é retórica: é método crítico para distinguir o cuidado autêntico que devemos honrar das máquinas religiosas de captura que devemos desmascarar. E fazê-lo sempre com dupla fidelidade: misericórdia para com os que buscam socorro, e radicalidade profética diante das lideranças e estruturas que “sabem bem o que fazem” ao transformar a fé em negócio e o sofrimento em ativo político-econômico.

 
 
 

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