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A Encruzilhada da Cor: Parditude, Miscigenação e o Debate Racial no Brasil.

A identidade nacional da cultura brasileira parece ser indissociável de uma narrativa poderosa e profundamente ambivalente: a da miscigenação. Desde a sua gênese, o Brasil foi forjado no encontro, na maioria das vezes violento, de povos indígenas, colonizadores europeus e povos africanos escravizados. Essa confluência étnica, que mais tarde se expandirá com ondas de imigração da Europa, Ásia e Oriente Médio, deu origem a uma população majoritariamente mestiça, um fato que se tornou central para a autoimagem do país. Contudo, a miscigenação no Brasil não é um conceito singular; é um paradoxo. Funciona, simultaneamente, como um celebrado mito fundador de harmonia e singularidade nacional e como um violento instrumento de hierarquização racial e apagamento cultural. O debate contemporâneo sobre a "parditude", a identidade e a experiência de ser pardo, representa o mais recente e contundente capítulo de uma longa batalha ideológica para definir o significado dessa mistura no tecido social e político da nação.

Este texto se propõe a auxiliar a desvelar as camadas desse complexo debate. A breve análise traçará uma jornada intelectual que parte da formulação do ideal da "democracia racial" na primeira metade do século XX, consolidada na obra de Gilberto Freyre, para então mergulhar nas críticas contundentes que desvelaram essa narrativa como um mito. A contraposição fundamental viria de Abdias do Nascimento, que denunciou a miscigenação como um projeto de genocídio. No entanto, foi uma geração posterior de pensadoras negras, notadamente Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Cida Bento, que aprofundou e sofisticou essa crítica, introduzindo análises interseccionais de gênero, poder e cultura que desnudaram lguns dos principais mecanismos subjacentes do racismo brasileiro.

Finalmente, veremos como esta história intelectual está conectada ao campo de batalha político de nossos dias. A emergência da população parda como o maior grupo demográfico do país, conforme revelado pelo Censo de 2022, intensificou as disputas em torno das políticas de ação afirmativa, das comissões de heteroidentificação e do próprio significado de ser pardo no Brasil. Compreender essa trajetória é essencial para decifrar a encruzilhada em que o Brasil se encontra, forçado a confrontar as contradições de sua identidade mestiça e a decidir o futuro de sua luta antirracista.


A Nação Mestiça – Gênese e Crítica de um Ideal


O século XX foi o palco onde se forjou a principal dialética do pensamento racial brasileiro, um embate de ideias que continua a moldar as discussões contemporâneas. De um lado, a visão romantizada da miscigenação como a essência de uma nação harmoniosa e singular. Do outro, sua denúncia implacável como um projeto de violência e apagamento racial. Vamos explorar um pouco da gênese e da crítica desse ideal.


A Apologia da Mistura: Gilberto Freyre e a "Democracia Racial"


No início do século XX, o pensamento intelectual brasileiro estava profundamente influenciado pelas teorias do racismo científico europeu, que viam a miscigenação como uma causa de degeneração racial, um obstáculo intransponível ao progresso da nação. Nesse contexto, a publicação de Casa-Grande & Senzala em 1933, pelo sociólogo Gilberto Freyre, representou uma virada epistemológica radical. Freyre não apenas rejeitou a tese da degeneração, mas inverteu seu sinal, argumentando que a força e a originalidade do Brasil residiam precisamente em sua condição mestiça.

Em sua obra, que mescla história, sociologia e antropologia de forma inovadora, Freyre analisa a formação da família e da sociedade patriarcal no Nordeste açucareiro. Ele postula que a colonização portuguesa foi marcada por uma singular "plasticidade" ou "mobilidade". A escassez de mulheres brancas, segundo seu argumento, teria impulsionado os colonizadores a se relacionarem com mulheres indígenas e africanas, criando "zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos". Para Freyre, esse processo foi a chave para a formação do Brasil. Em uma passagem emblemática, ele afirma:

A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala.

Nessa visão, a mistura racial não era um problema, mas a solução. Ela teria atuado como um agente democratizante, suavizando as hierarquias rígidas da sociedade escravocrata e promovendo uma intensa troca cultural. Freyre valorizou as contribuições africanas e indígenas à cultura brasileira: Na culinária, na religião, nos costumes... de uma forma inédita para a época, contrapondo-se à visão puramente eurocêntrica que dominava a intelectualidade.

Apesar de seu caráter revolucionário ao desafiar o racismo científico, a obra de Freyre tornou-se alvo de críticas contundentes nas décadas seguintes. A principal crítica é que, ao focar nos aspectos de "confraternização", ele romantizou e obscureceu a violência intrínseca ao sistema escravocrata. As relações sexuais entre senhores e escravizadas, apresentadas como parte de um processo de miscigenação "gostosa", foram, em sua esmagadora maioria, atos de estupro e coação, manifestações brutais do poder senhorial. Essa violência era a base de uma sociedade que, na época da chegada da corte portuguesa em 1808, tinha no Rio de Janeiro um dos maiores mercados de escravos do mundo, o Valongo, e utilizava rotineiramente instrumentos de tortura como máscaras de folha de flandres e anéis de ferro para comprimir os polegares, conhecidos como "anjinhos". Ao minimizar essa realidade, Freyre contribuiu para a solidificação do que viria a ser conhecido como o "mito da democracia racial": a crença de que o Brasil, por ser uma nação mestiça, seria um país livre de preconceito e conflito racial, uma sociedade harmoniosa onde as raças conviviam em igualdade. Essa ideologia, embora apresentasse uma imagem positiva do país, serviu por décadas para mascarar as profundas e persistentes desigualdades raciais e para deslegitimar as denúncias de racismo.


O Avesso do Mito: Abdias do Nascimento e a Denúncia do Genocídio


Se Gilberto Freyre ofereceu a tese da miscigenação como harmonia, a antítese mais poderosa e definitiva veio de Abdias do Nascimento, um dos mais importantes intelectuais e ativistas do movimento negro brasileiro. Em sua obra seminal, O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado (1978), Nascimento desmonta a narrativa freyriana e reinterpreta a miscigenação não como um processo de democratização, mas como uma política deliberada e violenta de branqueamento, cujo objetivo final era o desaparecimento do povo negro.

Para Nascimento, o mito da democracia racial não era um simples equívoco, mas uma sofisticada ferramenta de opressão. Ele a descreveu como a:

"metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas eficazmente institucionalizado nos níveis oficiais de governo assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país".

Esse racismo mascarado, segundo ele, era mais insidioso porque negava a sua própria existência, desarmando suas vítimas e rotulando qualquer denúncia como "complexo" ou "ressentimento".

O cerne do argumento de Nascimento é a denúncia da miscigenação como a principal estratégia desse genocídio. Ele ataca frontalmente a visão romantizada das relações inter-raciais, expondo-as como um mecanismo de eliminação. Em uma passagem de força avassaladora, ele escreve:

O processo de mulatização, apoiado na exploração sexual da negra, retrata um fenômeno de puro e simples genocídio. Com o crescimento da população mulata a raça negra está desaparecendo sob a coação do progressivo clareamento da população no País.

Nascimento documenta como essa ideologia do branqueamento foi traduzida em políticas de Estado. Ele aponta para as políticas de imigração do final do século XIX e início do século XX, que incentivaram massivamente a vinda de europeus com o objetivo explícito de "dissolver" a população negra e indígena, considerada a "mancha negra" do Brasil. Ele argumenta que termos como "assimilação" e "aculturação" eram eufemismos para as "manipulações indiretas e sutis" usadas pela sociedade dominante para completar o "esmagamento dos descendentes africanos".

A publicação de O Genocídio do Negro Brasileiro, baseada em um trabalho que foi censurado pelo governo brasileiro em um festival na Nigéria em 1977, marcou um ponto de inflexão. A obra de Nascimento não apenas desmascarou a falácia da democracia racial, mas também forneceu a base teórica para gerações de ativistas negros, redefinindo a miscigenação não como um símbolo de orgulho nacional, mas como a cicatriz de um projeto de extermínio. O debate entre a visão de Freyre e a de Nascimento estabeleceu, assim, a tensão fundamental que perpassa todo o pensamento racial brasileiro: a miscigenação é a prova da nossa harmonia ou a evidência do nosso crime?


A Matriz da Desigualdade – A Herança da Escravidão e a "Ralé" Brasileira


Para compreender a profundidade e a persistência do racismo no Brasil, bem como a eficácia do mito da democracia racial em mascará-lo, é preciso ir além do debate culturalista e analisar a própria estrutura social legada pela escravidão. O sociólogo Jessé Souza, em obras como A Elite do Atraso (2019), oferece uma crítica contundente às interpretações que localizam a singularidade brasileira em traços culturais, como o "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda, argumentando que a verdadeira chave para entender o país está na forma como a escravidão foi abolida.

Souza postula que o fato definidor da sociedade brasileira moderna foi o completo abandono da população recém-liberta à sua própria sorte. Diferente de outros processos abolicionistas, no Brasil não houve qualquer política de integração, distribuição de terras ou acesso à educação para os ex-escravizados. Esse abandono deliberado criou o que ele denomina a "ralé dos novos escravos": uma imensa massa de pessoas desprovidas de todos os tipos de capital, econômico (sem posses), cultural (sem acesso à educação formal) e social (sem redes de apoio) e marcadas pelo estigma da escravidão, que as desumanizava.

Essa classe de despossuídos, segundo Souza, é a matriz da desigualdade brasileira. Ela não é um efeito colateral do desenvolvimento, mas a sua própria fundação. A violência da escravidão, que exigia a tortura física e psíquica para dobrar a vontade do escravizado, foi perpetuada após 1888 na forma de uma exclusão estrutural. Nesse contexto, o mito da democracia racial e a celebração da miscigenação cumprem uma função ideológica precisa: tornar invisível essa violência fundadora. Ao negar a existência de um problema racial e atribuir a pobreza a uma suposta incapacidade individual ou a uma "corrupção" cultural do povo, a elite se isenta de sua responsabilidade histórica na criação e manutenção dessa massa de abandonados.

A análise de Souza desloca o eixo do debate: o problema central do Brasil não seria uma herança cultural portuguesa de personalismo, mas a herança estrutural da escravidão, que produziu uma sociedade partida entre uma minoria detentora de todos os privilégios e uma maioria permanentemente marginalizada. Essa perspectiva oferece uma base material para compreender por que as críticas de pensadoras como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro são tão radicais, pois elas desvelam os mecanismos que sustentam essa estrutura de opressão.


A Desconstrução do Racismo Mascarado


A denúncia de Abdias do Nascimento foi fundamental para romper com a hegemonia do mito da democracia racial. Contudo, foi uma geração de intelectuais negras, atuando a partir das décadas de 1980, que aprofundou e complexificou essa crítica. Elas não apenas reiteraram a denúncia do genocídio, mas foram além, analisando os mecanismos estruturais e subjetivos que sustentam o racismo brasileiro. Ao introduzirem perspectivas interseccionais que articulam raça, gênero e classe, essas pensadoras deslocaram o foco da análise dos efeitos do racismo para as suas engrenagens de poder, revelando como a ideologia da miscigenação opera no cotidiano, na cultura e na psique nacional.


Lélia Gonzalez: Amefricanidade Contra a Ideologia do Branqueamento


Lélia Gonzalez, antropóloga, filósofa e ativista, foi uma das vozes mais originais e incisivas na desconstrução do racismo brasileiro. Ela diagnosticou a especificidade do racismo no Brasil e em outras nações latinas como um "racismo disfarçado" ou por "denegação". Diferente do racismo aberto, de segregação explícita, este opera de forma mais sutil, precisamente através das "teorias' da miscigenação, da assimilação e da 'democracia racial'". Para Gonzalez, a eficácia desse modelo reside em sua capacidade de impedir a "consciência objetiva desse racismo", pois a crença na miscigenação como um valor positivo cria a ilusão de que o racismo não existe. O resultado é uma profunda alienação, na qual o "desejo de embranquecer" é internalizado, levando à "negação da própria raça, da própria cultura".

Para combater essa estrutura, Gonzalez desenvolveu um de seus conceitos mais potentes: a Amefricanidade. Proposto em seu ensaio fundamental, "A categoria político-cultural de amefricanidade" (1988), o termo transcende a geografia para designar uma identidade histórico-cultural compartilhada. A Amefricanidade propõe um reenquadramento epistemológico e político das Américas. Em vez de ver o continente através da lente da colonização europeia, Gonzalez o concebe a partir da experiência comum dos povos africanos em diáspora e dos povos indígenas em sua luta contra a dominação. Ela argumenta que, apesar das diferentes línguas e fronteiras nacionais, há traços culturais, linguísticos e religiosos que conectam o Brasil ao Caribe e a outras partes da América Latina, formando uma civilização "amefricana".

A categoria da Amefricanidade é uma ferramenta política radical. Ao afirmar essa identidade transnacional, Gonzalez quebra o isolamento imposto pelo mito da excepcionalidade brasileira. Ela demonstra que o "racismo disfarçado" não é uma particularidade do Brasil, mas um padrão nas sociedades de colonização latina, e que a resistência a ele também tem raízes comuns, manifestadas desde os quilombos e palenques até as formas culturais contemporâneas. Como ela mesma pontua, reconhecer a Amefricanidade é, em última instância,


"reconhecer um gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos".

Dessa forma, o conceito funciona como um antídoto direto à ideologia do branqueamento, pois, em vez de buscar a diluição das raízes africanas e indígenas em um ideal europeu, ele as posiciona como o centro a partir do qual uma nova compreensão do continente deve ser construída.30


Sueli Carneiro: A Hierarquia Cromática e a Fragmentação da Identidade Negra


Enquanto Lélia Gonzalez oferecia um novo mapa geopolítico, a filósofa e ativista Sueli Carneiro dedicou-se a dissecar os mecanismos psicossociais através dos quais o racismo opera no Brasil. Em sua análise, a miscigenação é o principal instrumento de um projeto político deliberado: o branqueamento. Carneiro faz uma distinção crucial: miscigenação, o simples processo de mistura, é um fenômeno universal; já o branqueamento é a "instrumentalização da mestiçagem", uma tentativa de "melhoramento" da população através do clareamento progressivo.

A principal ferramenta desse projeto, segundo Carneiro, é a instituição de uma "hierarquia cromática e de fenótipos que têm na base o negro retinto e no topo o 'branco da terra'". Essa escala de cor oferece um "benefício simbólico" para os indivíduos de pele mais clara, incentivando-os a se distanciarem da negritude e a se identificarem com uma miríade de categorias intermediárias: "moreno claro", "moreno escuro", "mulato", "jambo", "marrom-bombom". O resultado é uma confusão identitária que culmina na categoria oficial do IBGE, "pardo", que, para Carneiro, agrega aqueles cuja "identidade étnica e racial [foi] destroçada pelo racismo".

Essa fragmentação identitária não é um mero efeito colateral; é uma estratégia política de dominação. Ao pulverizar a identidade negra em múltiplas subcategorias, a hierarquia cromática impede a formação de uma consciência coletiva e de uma solidariedade política robusta, enfraquecendo a capacidade de reivindicação por equidade racial. A ideologia da miscigenação, portanto, funciona para dividir e neutralizar o potencial político da população não-branca. Em sua obra, Carneiro consistentemente conecta essa estratégia ideológica à sua origem violenta, lembrando que o discurso da mistura harmoniosa "omite o estupro colonial praticado pelo colonizador sobre mulheres negras e indígenas". A miscigenação, nesse sentido, não é apenas uma política de branqueamento futuro, mas a perpetuação de uma violência histórica, especialmente contra o corpo da mulher negra.

Essas análises, presentes em artigos como "Miscigenação" (2000) e desenvolvidas em profundidade em sua tese de doutorado, publicada como o livro Dispositivo de Racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser (2023), revelam como o racismo brasileiro se sustenta não apenas pela exclusão, mas pela manipulação da própria identidade racial, transformando a mestiçagem em uma arma contra a negritude.


Cida Bento: O Pacto da Branquitude e a Manutenção dos Privilégios


A psicóloga e ativista Cida Bento promoveu outra virada crucial no debate racial ao deslocar o foco analítico. Em vez de se concentrar apenas na experiência das populações racializadas, ela investigou o papel ativo da branquitude na manutenção das desigualdades. Seu conceito central, desenvolvido no livro O Pacto da Branquitude (2022), expõe a cumplicidade silenciosa que sustenta a supremacia branca no Brasil.

Bento define o "pacto da branquitude" como um acordo tácito, não verbalizado e narcísico entre pessoas brancas para proteger seus privilégios e garantir sua permanência em posições de poder. Esse pacto se manifesta de várias formas, desde a preferência por contratar e promover outros brancos no mercado de trabalho até a manutenção de um silêncio coletivo sobre as vantagens herdadas do período escravocrata. A ideologia da miscigenação e o mito da democracia racial são absolutamente funcionais para este pacto. Ao promoverem a ideia de que o Brasil não tem um problema racial, eles permitem que a branquitude se apresente como uma identidade neutra, universal e não racializada, e que os privilégios brancos sejam justificados como resultado exclusivo do mérito individual, e não de uma estrutura histórica de opressão.

A motivação de Bento para desenvolver essa teoria partiu de sua experiência profissional, onde observou a


"ausência de um discurso explícito sobre os brancos na história do país, e, ao mesmo tempo, o silêncio sobre a herança escravocrata concreta ou simbólica, que definia ambientes de trabalho desiguais".

Ao inverter a questão racial, ela argumenta que "não temos um problema negro no Brasil, temos um problema nas relações entre negros e brancos".

A análise de Cida Bento é demolidora porque revela que a narrativa da miscigenação harmoniosa não é apenas uma fantasia benigna, mas um álibi ativo que permite à branquitude negar sua responsabilidade na perpetuação do racismo. O silêncio sobre a raça é, na verdade, um discurso poderoso sobre o poder branco. Ao expor esse pacto, Bento oferece uma ferramenta para entender por que as desigualdades raciais são tão resistentes à mudança: elas não são mantidas apenas por preconceito individual, mas por um sistema de lealdades e proteções grupais que opera silenciosamente para preservar uma hierarquia herdada da escravidão.

O trabalho dessas três pensadoras, em conjunto, representa uma sofisticação da crítica iniciada por Abdias do Nascimento. Elas não apenas denunciaram o mito, mas dissecaram sua anatomia, mostrando como ele opera em escala continental (Gonzalez), como se internaliza na subjetividade e na política (Carneiro) e como serve aos interesses de manutenção do poder branco (Bento).


Parditude em Disputa – Identidade e Política


A profunda genealogia intelectual sobre a miscigenação no Brasil não permaneceu no campo da teoria. Atualmente esses debates transbordaram para a arena pública, impulsionados por mudanças demográficas, pela implementação de políticas de reparação e pelo surgimento de novos movimentos identitários. A categoria "pardo", antes um termo ambíguo no gradiente da mestiçagem, tornou-se o epicentro de uma disputa política sobre identidade, direitos e o futuro do projeto antirracista no país.


O Pardo no Censo: A Emergência de uma Nova Maioria


Um marco decisivo nesse processo foi a divulgação dos resultados do Censo Demográfico de 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pela primeira vez desde que a classificação por cor ou raça foi padronizada em 1991, a população que se autodeclara parda se tornou o maior grupo do país, somando 92,1 milhões de pessoas, ou 45,3% do total. A população branca, historicamente majoritária, passou a representar 43,5%.45 Em paralelo, a população preta também registrou um crescimento expressivo, alcançando 10,2%.48

Essa mudança demográfica não é apenas um reflexo de dinâmicas de nascimento e mortalidade. Ela representa, sobretudo, uma profunda transformação na consciência racial dos brasileiros. A categoria "pardo" sempre foi complexa e fluida. Uma famosa pesquisa do IBGE de 1976, que permitiu respostas abertas sobre a cor da pele, registrou 136 termos diferentes, como "café com leite", "morena" e "chocolate", evidenciando a dificuldade de enquadrar a realidade cromática do Brasil nas cinco categorias oficiais. Historicamente, a pressão da ideologia do branqueamento incentivava pessoas de pele mais clara a se identificarem como brancas, enquanto o estigma associado à negritude levava muitos a preferirem termos intermediários.

O crescimento da autodeclaração como pardo e preto nas últimas décadas indica uma reversão dessa tendência. Fatores como a atuação do movimento negro, a maior discussão sobre racismo na sociedade e, crucialmente, a implementação de políticas de ação afirmativa, como as cotas raciais, incentivaram um processo de reconhecimento e afirmação racial. Muitas pessoas que antes poderiam se identificar como "morenas" ou mesmo brancas passaram a se reconhecer como pardas ou pretas, compreendendo sua posição dentro das hierarquias raciais do país. Portanto, a emergência de uma maioria parda é um fenômeno tanto demográfico quanto político, sinalizando o enfraquecimento do ideal de branqueamento e uma nova dinâmica na forma como os brasileiros se veem e se posicionam racialmente.


Evolução da Autodeclaração de Cor ou Raça no Brasil (Censos IBGE 2010-2022)


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A Reivindicação da Parditude: Entre a Afirmação Mestiça e a Unidade Negra


A consolidação demográfica dos pardos como maioria impulsionou o surgimento de um movimento político e identitário conhecido como "parditude". Seus proponentes argumentam que a experiência parda, fruto direto da miscigenação, constitui uma identidade racial distinta, que não deve ser reduzida nem à branquitude nem à negritude. Defende o reconhecimento de uma consciência "mestiça, híbrida, plural", que desafiaria o binarismo racial (branco/negro) que, segundo defensores, é importado do contexto norte-americano e não reflete a complexidade brasileira. Para esse movimento, afirmar a parditude é afirmar a própria realidade da formação do povo brasileiro, reivindicando um lugar próprio no debate racial. Essa reivindicação se ancora em um sentimento de não pertencimento, um "limbo identitário-racial" no qual o pardo não é visto como branco pela sociedade branca, nem sempre é acolhido como negro pelo movimento negro, vivendo "nas bordas" de classificações rígidas.

Essa reivindicação, no entanto, gera uma tensão direta com a estratégia política consolidada pelo movimento negro nas últimas décadas. Desde os anos 1970, o movimento negro brasileiro tem trabalhado para unificar politicamente pretos e pardos sob a categoria "negro". Essa junção não é arbitrária; baseia-se na constatação de que, apesar das diferenças de tonalidade de pele, ambos os grupos enfrentam desvantagens sociais, econômicas e de violência muito semelhantes quando comparados à população branca. A categoria "negro" (preto + pardo) tornou-se, assim, uma ferramenta política fundamental para dar visibilidade ao tamanho da população afrodescendente, para denunciar o racismo de forma coesa e para fundamentar a demanda por políticas públicas reparatórias, como as cotas.

Do ponto de vista de muitas lideranças do movimento negro, o discurso da "parditude" como uma identidade separada é problemático e perigoso. A principal preocupação é que ele possa levar à fragmentação da luta antirracista, enfraquecendo a força política do movimento negro ao dividi-lo. Há também o temor de que essa "terceira via" racial possa, inadvertidamente, reabilitar a ideologia da miscigenação e da democracia racial, ao diluir a denúncia do racismo sistêmico em uma celebração da mestiçagem. Além disso, existe a preocupação prática de que a ambiguidade da identidade parda possa ser explorada por pessoas brancas para fraudar políticas de ação afirmativa, minando a eficácia dessas medidas reparatórias. A disputa, portanto, não é apenas sobre nomes ou identidades, mas sobre a estratégia política mais eficaz para combater o racismo no Brasil.


O Campo de Batalha das Cotas: Heteroidentificação e a Fenotipia em Questão


Nenhum outro espaço torna o debate sobre a parditude tão concreto e acirrado quanto a implementação das políticas de cotas raciais em universidades e concursos públicos. Inicialmente, o acesso a essas políticas era baseado na autodeclaração do candidato. No entanto, a ocorrência de fraudes generalizadas, com pessoas fenotipicamente brancas se declarando pardas para obter vantagens, tornou esse critério insustentável.

A resposta institucional foi a criação das comissões de heteroidentificação. Essas bancas, geralmente compostas por membros da comunidade acadêmica com diversidade racial, têm a função de complementar a autodeclaração, avaliando se o fenótipo do candidato (características físicas como cor da pele, tipo de cabelo e traços faciais) condiz com o de uma pessoa que seria socialmente identificada como negra (preta ou parda) e, portanto, sujeita ao racismo. A lógica é que as cotas visam reparar os efeitos da discriminação, e a discriminação racial no Brasil se baseia primariamente na aparência, não na ascendência ou na autoidentificação isolada.

A existência e o funcionamento dessas comissões são extremamente controversos. Críticos, incluindo membros do movimento da parditude, acusam as bancas de serem subjetivas, de criarem "tribunais raciais" e de gerarem novas injustiças, ao negarem o direito à identidade de indivíduos que se consideram pardos, mas não são considerados "suficientemente negros" pela comissão. Por outro lado, defensores das comissões, incluindo grande parte do movimento negro, as veem como um mecanismo indispensável para garantir a integridade e a eficácia da política de cotas, assegurando que os beneficiários sejam de fato aqueles para quem a política foi criada.

Essa controvérsia revela uma verdade profunda sobre a sociedade brasileira. A necessidade de criar um órgão estatal para "verificar" a raça de alguém é a admissão institucional de que o mito da democracia racial ruiu por completo. O Estado, ao implementar a heteroidentificação, reconhece oficialmente que a raça no Brasil não é uma questão de identidade privada, ancestralidade ou escolha, mas uma construção social baseada na percepção do outro, uma marca no corpo que determina oportunidades e violências. As comissões de heteroidentificação, com todas as suas complexidades e desafios, representam o reconhecimento burocrático de que, no Brasil, a cor da pele importa e muito.


O Fenômeno Beatriz Bueno: Crise ou Oportunidade para a Luta Antirracista


O filósofo Enrique Dussel ensina que todo processo humano, incluindo movimentos sociais e projetos políticos, é inerentemente imperfeito e, portanto, inevitavelmente gerará vítimas e exclusões. Os movimentos negros, em sua pluralidade, não são exceção a essa regra. O surgimento recente do fenômeno em torno da pesquisadora Beatriz Bueno e a reabertura do debate sobre a parditude podem ser vistos sob essa ótica: como uma manifestação das tensões internas e, potencialmente, como uma oportunidade de reoxigenação para as lutas contemporâneas, se os movimentos negros e este movimento protagonizado por Bueno não conceberem a identidade como essencial e aceitarem o diáogo.

O argumento central que parece fundamentar o conceito de parditude, popularizado por Bueno em plataformas como o TikTok e em seu artigo "Impedidos de Entrar em Wakanda", é que pessoas pardas sofrem discriminações e preconceitos específicos, distintos daqueles vividos por pessoas negras de pele retinta, por não serem percebidas nem como brancas, nem como negras. Essa reivindicação de uma experiência particular toca em um ponto sensível da sociedade neoliberal, onde o sentimento de pertença e a inclusão são fundamentais para a realização pessoal do indivíduo. Alguns movimentos negros, inclusive, historicamente se valeram desses argumentos para conquistar políticas públicas.

A reação a essas ideias tem sido mista, com muitas críticas focadas em ataques pessoais à proponente, em vez da discussão de seus argumentos. No entanto, a questão levantada por ela, parece ser relevante: se a maioria da população brasileira se declara parda, não seria estratégico para os movimentos negros dialogar com essa nova articulação? Tal diálogo poderia somar-se à luta pelo reconhecimento da multirracialidade e, ao mesmo tempo, pensar estratégias comuns para ampliar as políticas públicas, reconhecendo que protagonistas pardos sempre fizeram parte dos movimentos negros. A recusa ao diálogo, taxando a nova corrente simplesmente como "traidora", arrisca ignorar questões geracionais e de comunicação, perdendo a oportunidade de fortalecer a luta antirracista de forma mais ampla e inclusiva, criando os consensos democráticos que os movimentos sociais em geral ainda buscam aprender a construir.


Perspectivas Filosóficas Ampliadas – A Tensão entre o Universal e o Circunstancial


Para além do debate focado na realidade brasileira, a discussão sobre identidade, miscigenação e modernidade pode ser enriquecida por perspectivas filosóficas e sociológicas mais amplas, que ajudam a contextualizar e aprofundar as tensões locais. Pensadores latino-americanos e europeus oferecem ferramentas conceituais para compreender a complexa relação entre a busca por uma identidade autêntica e os projetos de modernização que marcaram o continente.


Leopoldo Zea e a Filosofia da "Circunstância" Mestiça


O filósofo mexicano Leopoldo Zea oferece uma crítica contundente à importação de modelos filosóficos europeus que ignoram a realidade concreta da América Latina. Em sua análise sobre o pensador, a pesquisadora Ofelia Maria Marcondes destaca que, para Zea, toda filosofia autêntica é uma resposta à "circunstância", o tempo, o lugar e a situação histórica específica de um povo. Ele rejeita a busca por uma essência humana universal e abstrata, argumentando que o ser humano é, antes de tudo, um ser histórico, moldado por suas privações e lutas.

A circunstância latino-americana, segundo a leitura de Marcondes sobre Zea, é fundamentalmente a da miscigenação. Zea argumenta que o mestiço foi historicamente lançado em um vazio existencial, considerado pela cultura europeia um "infra-homem", pois não se encaixava nem no modelo europeu, nem no indígena. Essa "justaposição de culturas", em vez de criar uma identidade, inicialmente a negava, resultando em um processo de imitação de modelos estrangeiros que levava à perda de si mesmo. A superação dessa alienação, para o autor, viria da tomada de consciência dessa identidade mestiça. Reconhecendo toda a história de violências físicas e simbólicas, todos os mecanismos políticos de embranquecimento, nada muda o fato de que a pessoa mestiça é fruto da união de conquistador e conquistado, e a mestiçagem, quando assumida e protagonista por reconhecimento e justiça, tem o potencial de vencer a discriminação racial, integrando as diferentes heranças culturais em uma nova síntese. A filosofia, nesse sentido, tem o papel de promover essa consciência para superar a dependência, não pela imitação, mas pela criação de respostas próprias aos problemas vitais que a circunstância apresenta. A obra de Zea, portanto, parece fornecer base filosófica para a valorização de uma identidade mestiça e histórica, em oposição a ideais de pureza racial ou de modernização universalista.


O Projeto Modernizador Positivista: Gabino Barreda e a Busca por uma "Razão Homogênea"


Em contraste direto com a valorização da particularidade cultural, o século XIX latino-americano foi profundamente marcado por projetos modernizadores de inspiração positivista. Um de seus maiores expoentes foi o mexicano Gabino Barreda, que via na educação científica o caminho para superar a "completa anarquia que reina atualmente nos espíritos e nas ideias".

O projeto de Barreda consistia em criar um "fundo comum de verdades" através de uma educação "homogênea e completa", baseada em uma hierarquia rigorosa das ciências, das matemáticas à lógica. O objetivo era inculcar nos jovens um método de pensamento "positivo", capaz de erradicar as superstições e os erros herdados da educação tradicional, que ele considerava "descuidada e fatal". Esse projeto representa a face modernizadora do debate: a crença de que a aplicação de uma razão universal, científica e metódica poderia forjar a unidade nacional e o progresso, muitas vezes em detrimento das culturas e saberes locais, vistos como obstáculos a serem superados. A tensão entre a "circunstância" de Zea e a "razão homogênea" de Barreda encapsula a dialética central entre identidade e modernização no pensamento latino-americano.


Anthony Giddens e a Identidade como "Projeto Reflexivo" na Alta Modernidade


O sociólogo britânico Anthony Giddens oferece um arcabouço teórico para entender a identidade no contexto global da "alta modernidade". Para Giddens, a modernidade tardia é uma ordem pós-tradicional, caracterizada pela "reflexividade institucional" e pela crescente interconexão entre influências globalizantes e disposições pessoais. Nesse cenário, o "eu" deixa de ser algo dado pela tradição ou pela comunidade e se torna um "projeto reflexivo".

Cada indivíduo é forçado a construir e reconstruir continuamente sua própria biografia e identidade a partir de uma pluralidade de escolhas e estilos de vida disponíveis. Essa perspectiva ajuda a iluminar o debate sobre a parditude no Brasil. A crescente autodeclaração como pardo ou preto pode ser vista como parte desse "projeto reflexivo", no qual os indivíduos, influenciados por "sistemas abstratos" (como o conhecimento sociológico sobre desigualdade, as políticas de cotas e as mídias), reavaliam sua posição no mundo e constroem ativamente uma narrativa identitária que antes era suprimida pela ideologia do branqueamento. A identidade, nesse sentido, não é uma essência fixa, mas uma negociação constante em um mundo de risco e incerteza.


Epistemologias da Re-existência: "Escrevivências" e o Cosmoencantamento


Ampliando a crítica das pensadoras negras brasileiras, um movimento mais amplo de mulheres filósofas e escritoras propõe uma descolonização radical do conhecimento. Conceitos como "escrevivências", cunhado por Conceição Evaristo, validam a experiência vivida, especialmente a de mulheres negras, como fonte legítima de saber, em oposição a uma epistemologia abstrata e universalizante.

Essa abordagem, aprofundada por pesquisadoras como Adilbênia Machado, valoriza a oralidade, a ancestralidade e a comunidade como pilares de uma nova forma de produzir conhecimento. Trata-se de uma filosofia "de corpo inteiro", enraizada no "chão" da realidade vivida, que se opõe à fragmentação do saber ocidental. A proposta é "contracolonizar", ou seja, "reeditar as nossas trajetórias a partir de nossas matrizes", criando metodologias e currículos que não silenciem, mas potencializem as vozes historicamente marginalizadas. Essa perspectiva introduz o "cosmoencantamento" como um modo de ser e estar no mundo que integra o ser humano à natureza e à comunidade, movido por uma ética do bem-viver, do cuidado e do afeto. Essa epistemologia não apenas critica o racismo e o sexismo, mas oferece um caminho para a construção de saberes outros, que se afirmam a partir da diferença e da re-existência.


A Subjetividade Neoliberal e a Política do Ressentimento


Uma outra lente para analisar a formação de identidades e grupos políticos no Brasil contemporâneo é a do neoliberalismo e seus efeitos sobre a subjetividade. O neoliberalismo cria mecanismos que moldam as subjetividades e geram um sentimento de não pertença e de falta de sentido. O objetivo é que essa insatisfação, que se soma à "falta" psicanalítica, exija uma reparação através do ato do consumo, que se configura como um verdadeiro culto espiritual, conforme proposto pelo economista Victor Lebow em 1955.

Essa busca por inclusão e pertencimento, a partir de um eu que se concebe como indivíduo isolado, pode criar ressentimentos e agrupar pessoas em torno de objetivos comuns, mas ainda não comunitários. O que unifica esses grupos é, muitas vezes, uma liderança com uma comunicação essencialmente simples, como analisa Theodor Adorno em "A teoria Freudiana e o padrão da propaganda fascista" de 1951. Nesta análise, encontra-se uma gênese adequada para compreender fenômenos como o Bolsonarismo.


Síntese e convite a Perspectivas Futuras


A trajetória do debate sobre miscigenação e parditude no Brasil revela uma nação em constante conflito com sua própria imagem. A breve análise aqui empreendida demonstrou a evolução de uma narrativa que se moveu de uma celebração acrítica da mistura, encarnada na "democracia racial" de Gilberto Freyre, para uma denúncia contundente de seu papel como instrumento de violência e apagamento, articulada por Abdias do Nascimento e aprofundada pela análise estrutural de Jessé Souza sobre a herança da escravidão. Essa crítica foi subsequentemente tornada mais complexa pelas contribuições seminais de pensadoras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Cida Bento, que desvendaram os mecanismos culturais, psicossociais e de poder que sustentam um racismo mascarado pela ideologia da mestiçagem.

Hoje, essa tensão histórica se manifesta de forma explícita na arena política. A emergência demográfica de uma maioria parda, confirmada pelo Censo de 2022, não é apenas um dado estatístico, mas um catalisador que força o país a uma nova rodada de questionamentos sobre sua identidade. O debate atual sobre a parditude, exemplificado pelo fenômeno de Beatriz Bueno, coloca em xeque a estratégia de unificação política (pretos e pardos como negros) que fundamentou as conquistas do movimento negro, ao mesmo tempo em que as disputas em torno das comissões de heteroidentificação representam a falência institucional do mito da irrelevância da cor. Essa encruzilhada é ainda mais complexificada quando observada pelas lentes de pensadores como Leopoldo Zea, que defende uma filosofia atrelada à "circunstância" latino-americana, e no contexto da "alta modernidade" descrita por Anthony Giddens, onde a identidade se torna um projeto reflexivo individual.

A questão central e ainda não resolvida que parece se impôr é: qual será o significado político de ser mestiço hoje? A identidade parda se consolidará como um projeto de afirmação de uma consciência híbrida ou será integrada a uma identidade negra unificada, como defende a maior parte do movimento antirracista? A resposta definirá a configuração da luta por direitos e o desenho das políticas de equidade. Ao mesmo tempo, essa disputa ocorre em um cenário marcado pela subjetividade neoliberal, que fomenta o individualismo e o ressentimento, criando terreno fértil para movimentos políticos autoritários. A capacidade do Brasil de confrontar, sem máscaras, as hierarquias raciais que estruturam sua sociedade está, portanto, intrinsecamente ligada à sua capacidade de lidar com essas novas dinâmicas e de se abrir para epistemologias de re-existência, como as propostas pelas pensadoras da descolonização. A encruzilhada da cor não parece ser apenas um dilema identitário, mas o desafio definidor do futuro do projeto democrático brasileiro.


Referências citadas


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